quarta-feira, novembro 23, 2005

Grande Edgar

Ilustração de Artur de Carvalho




Já deve ter acontecido com você.

— Não está se lembrando de mim?

Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele esta ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou não lembra?

Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.

Um, curto, grosso e sincero.

— Não.

Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.

— Não me diga. Você é o... o...

"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:

— Desculpe, deve ser a velhice, mas...

Este também é um apelo à piedade. Significa "não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!". É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.

E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.

— Claro que estou me lembrando de você!

Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:

— Há quanto tempo!

Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.

— Então me diga quem sou.

Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:

— Pois é.

Ou:

— Bota tempo nisso.

Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.

— Como cê tem passado?

— Bem, bem.

— Parece mentira.

— Puxa.

(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)

Ele esta falando:

—Pensei que você não fosse me reconhecer...

—O que é isso?!

—Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.

—E eu ia esquecer de você? Logo você?

—As pessoas mudam. Sei lá.

— Que idéia. (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)

— É incrível como a gente perde contato.

— É mesmo.

Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.

— Cê tem visto alguém da velha turma?

— Só o Pontes.

— Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)

— Lembra do Croarê?

— Claro!

— Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.

— Velho Croarê. (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)

— Rezende...

— Quem?

Não é ele. Pelo menos isto esta esclarecido.

— Não tinha um Rezende na turma?

— Não me lembro.

— Devo esta confundindo.

Silêncio. Você sente que esta prestes a ser desmascarado.

Ele fala:

— Sabe que a Ritinha casou?

— Não!

— Casou.

— Com quem?

— Acho que você não conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador . Você esta tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?)

— Claro que conheci! Velho Bituca...

— Pois casaram.

É a sua chance. É a saída. Você passou ao ataque.

— E não avisou nada?

— Bem...

— Não. Espera um pouquinho. Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, O Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?

— É que a gente perdeu contato e...

— Mas meu nome tá na lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.

— É...

— E você acha que eu ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.

— Desculpe, Edgar. É que...

— Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam. ( Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele esta na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)

— Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?

— Certo, Edgar. E desculpe, hein?

— O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.

— Isso.

— Reunir a velha turma.

— Certo.

— E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...

— Bituca.

— E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?

— Tchau, Edgar!

Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.


(Luís Fernando Veríssimo)


Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 13.

20 comentários:

wind disse...

E-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r!!!!!!!!!:) Desculpa, mas delirei com este texto. Acontece-me muitas vezes falar com alguém e ficar a pensar de onde conheço;) beijos e parabéns pela escolha*

Mocho Falante disse...

ahahahahahahahahah. E não é que já me aconteceu mais que uma vez?

João Fialho disse...

De facto, já me aconteceu.

E a resposta, numa das vezes foi, tu és o.... o ...., O MANUEL, ... pois, exacto, o Manuel, pois claro, o Manuel.

Noutra vez, que me lembre, fiquei com alguma vergonha, pois deveria ter-me lembrado, e disse logo que,...he,.... NÃO! e afinal, até deveria saber.

Estas célulazinhas cinzentas, ás vezes, andam preguiçosas, ou distraídas, ou coisa do género.

Saúde ...

segurademim disse...

Episódios ilariantes, que nos acontecem ... é a Vida e a memória, por vezes, prega-nos partidas!!!
Beijo

Henrique Santos disse...

Belo texto, um autêntico delírio!
Já me aconteceu perguntarem por mim e eu, não saber o que responder... E, já perguntei por outros que me julgaram com nome diferente...
Um verdadeiro delírio...
Obrigada Ricky, com um abração

Isabel Filipe disse...

Oi Lumife,

Este texto de LFV,q ue muito aprecio, ainda não conhecia...adorei lê-lo;

Não com tanto exagero...mas já me vi várias vezes em situações desta...pois ando sempre com a "cabeça na lua"...

bjs

O Chaparro disse...

Eu acho que toda a gente já passou por igual o semelhante situação. Ao fim duns bons anos são muitas caras pra decorar.

Anónimo disse...

E eu a pensar que só acontecia comigo, felizmente ou infelizmente vejo que anda quase tudo com os neurónios cansados. Enfim, é a vida...
Bj

Nilson Barcelli disse...

A situação retratada no texto é óptima porque é bem real.
Eu digo sempre que para estas e outras situações do género
«Mais vale ficar vermelho uma vez do que ficar amarelo toda a vida».
Abraço.

Conceição Paulino disse...

oh k delícia, o k me ri...Bom restinho de semana. bj de luz

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Tem havido uma certa dificuldade em questão de tempo para visitar todos os amigos mas vou fazendo os possíveis por retribuir. A todos o meu obrigado e desejos de um bom fim de semana.

Anónimo disse...

As falhas da memória muito bem descritas, com algum humor e muita verdade.
Um abraço

Anónimo disse...

´Veríssimo é uma figura ímpar! Que bom vê-lo por cá!
Um abraço.

Anónimo disse...

Acho que quase a toda a gente aconteceu. Não conhecia o autor mas tem aqui um interessante texto. Beijinhos.

Raio de Sol disse...

demais esse excerto... tá o máximo...jinhuz

lena disse...

e não é que acontece muitas vezes?

gostei de ler este texto

interessante!


beijinhos

lena

Anónimo disse...

Este texto serviu para me pôr bem disposto. Obrigado.

Grilinha disse...

eheheheh :) até imaginei dois tipos á conversa no meio do passeio e afinal não se conheciam de lado nenhum .... ele há cada um!!! Adorei.

Anónimo disse...

Mais vale meter o rabo entre pernas e desaparecer.Espectacular!Um abraço.

Kalinka disse...

Só hoje li este texto, no entanto estava a ler e a pensar o mesmo que a Wind...e, mesmo antes de abrir os comments disse baixinho p/mim mesma: ESPECTACULAR...
Abro os comments e a Wind escreveu a mesma palavra, mas não é para copiar a reacção dela, no entanto tive que escrever a mesma, pois foi o que achei deste texto. Isso acontece várias vezes na nossa vida e por acaso, eu respondo sempre a verdade, se não me lembro digo mesmo que não me lembro e justifico o porquê de forma educada, acho que não há necessidade de inventar desculpas.
Foi uma excelente escolha.
Parabéns.
Obrigado pelas tuas visitas ao meu kalinka. Beijokas.

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