quinta-feira, outubro 20, 2005

Que fizeram dos nossos sonhos, Manuel ?





Que fizeram dos nossos sonhos, Manuel?





Estou no meu cantinho a escrever as minhas coisas, longe da ribalta. Mas agora tem que ser.

Meu nome é António Mesquita Brehm, tenho 78 anos, e escrevo este depoimento como simples cidadão português e não como Vitório Káli, escritor.



As traições não são apenas de agora e transformam sempre o destino dos homens.



Em 1962 encontrei-me, pela primeira vez, com Manuel Alegre em Luanda. Sacámos o santo e a senha da algibeira para nos identificarmos e, a partir daquele breve instante, metemo-nos numa das maiores aventuras das nossas vidas. Combinámos formar um único grupo com armas na mão e derrubar o regime de Salazar.



A guerra colonial havia começado tempo antes, centenas de colonos portugueses tinham sido cruelmente abatidos nas matas do norte de Angola e alguns milhares de negros sofriam agora perseguições e morte nos musseques de Luanda. A vergastada emocional paralisou os nervos da população. Mas toda a gente lúcida sabia que se tornara imperioso estancar aquele martírio inútil dos nossos povos.

Se tomássemos o poder em Luanda e controlássemos Angola, faríamos um ultimato a Salazar e encetaríamos negociações com os movimentos de libertação para discutirmos as condições da independência do território protegendo não só os direitos naturais dos angolanos como ainda de todos os portugueses que ali viviam.



Foi então, às vésperas do golpe militar, que um oficial nosso compatriota nos traiu (ele e alguns mais) e nos denunciou à PIDE acusando-nos de estarmos a vender Angola às forças de Satanás. Toda a cabeça do grupo revolucionário foi presa e encurralada na Prisão de São Paulo de Luanda. Nas celas pegadas às do Luandino Vieira, do António Jacinto e do António Cardoso, cujos nomes ficaram bem gravados na literatura angolana.



Hoje, na proximidade de grandes decisões para o nosso país, afinal também o mesmo acontece. A traição tem sempre um preço.



Estes factos foram determinantes para a evolução da guerra de Angola. E ela continuou por mais onze anos provocando milhares de mortos e estropiados ao exército português e genocídios aterradores de populações angolanas, a fuga em massa dos nossos colonos que lá deixaram os seus haveres, tudo aquilo que era afinal o resultado de muitos anos de trabalho e esperanças. E a destruição de toda uma economia regional que deveria sustentar o futuro de um dos países africanos mais poderosos, e possibilitando o assalto das elites angolanas e dos oportunistas desta lusa terra ao domínio dos grandes negócios e dos empregos milionários enquanto o povo humilhado sofria a fome, a doença, o estropiamento e o abandono.



Pois isto aconteceu muitos anos antes da revolução do 25 de Abril. E teria certamente apontado novo caminho ao futuro de Portugal e de todas as nossas antigas colónias africanas. Os poderes oficiais, e aquela cáfila que deles se aproveita, fizeram uma lavagem da História. Nunca falaram sobre o golpe militar de 1963 em Luanda. Mas o nosso processo policial está fechado a sete chaves, desde há muito, nos Arquivos da PIDE e um dia será detalhadamente revelado para espanto de muita gente. Também eu publicarei mais tarde meu livro de memórias sobre este período da nossa vida colectiva.



Neste momento da candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República, é meu dever recordar a nossa saga de Angola, a figura lendária do Silva Araújo com o seu esquadrão de 500 guerreiros africanos, o major José Ervedosa que, no comando dos aviões de bombardeamento das bases da Ota e do Montijo da Força Aérea Portuguesa lançou as bombas de napalm nos sítios desertos da região de Malange para desrespeitar as ordens de massacrar os milhares de trabalhadores em greve da Baixa do Cassange, o Felisberto Lemos, gerente da Livraria Lello de Luanda, onde se organizaram também muitos encontros clandestinos, o comandante Jeremias Tschiluango dos guerrilheiros do Norte que logo se dispôs a levantar esquemas logísticos para nos ajudar a ocupar Luanda, o chefe Matifoge que roubou armas e munições nos quartéis portugueses.

E aqueles homens como o Vítor Barros, deputado da nossa Assembleia Nacional, que no Huambo nos abriu as portas dos gabinetes dos chefes militares das tropas da cidade, e o engenheiro Fernando Falcão que no Lobito havia preparado o levantamento da sua população contra o regime de Salazar.

E tantos outros oficiais e praças do nosso exército colonial e incógnitos civis que, desde a primeira hora, se integraram no movimento para a defesa da Liberdade.



E também muitos poetas e intelectuais (que palavra horrível) como o Alexandre Dáskalos, o Cochat Osório, o Adolfo Maria, o Henrique Abranches, o Mário António, o Aires de Almeida Santos, o Neves e Sousa, e os nossos camaradas do 1º Encontro de Escritores de Angola realizado no Lubango em Janeiro de 1963. Porque as revoluções também se preparam com poetas, escritores e artistas.



Mas a hora chegara.

E o nosso Manuel Alegre, o nosso grande poeta da gesta portuguesa e da nossa Resistência, foi também então um dos grandes líderes desta revolta armada. E muito deverá contar aos portugueses sobre aquelas horas transcendentes.



Por fim desejo contar dois episódios acerca dele nesse período que nunca esqueci. O primeiro aconteceu no pátio da nossa prisão na hora do recreio quando, de repente, recebemos a visita de São José Lopes, Director Geral da PIDE, que vinha "inspeccionar" o nosso comportamento. Perguntou diversas futilidades sobre a prisão, estacou diante do meu companheiro e disparou: – "Diga lá, senhor Alferes, se esta situação estivesse invertida e você me tivesse preso, o que faria?". Manuel Alegre não vacilou um segundo e respondeu-lhe com firmeza: – "Olhe, senhor Director, mandava-o prender sem hesitações para ser julgado e depois condenado, sem dúvida". São José Lopes, o senhor todo-poderoso da polícia secreta em Angola, ficou perplexo. Não esperava por tal desafio, esteve algum tempo calado e depois sentenciou: – "O senhor Alferes é um homem de coragem". Qual seria o preso, naquelas condições, que o enfrentaria com tal dignidade?



O segundo passou-se em minha casa quando fomos libertados, muitos angolanos nos vieram saudar. Recordo que nessa noite de alegria os funcionários negros da Texaco (a estação de serviço ao lado) nos bateram à porta para nos entregar duas galinhas vivas e era essa a singela homenagem de agradecimento pela luta que sempre travámos junto deles. Foi um bonito ritual de que só, muitos anos depois, entendi no seu verdadeiro significado. Madalena, minha fiel lavadeira da Vila Alice, a pequena Lídia que se esgueirava pelos becos com nossas mensagens, Simão, o carpinteiro do Rangel, que dirigia o grupo dos batedores do bairro e alguns outros, lá estavam presentes à nossa espera, as bocas rasgadas no melhor sorriso que vi até hoje. Manuel Alegre ficou com as lágrimas a brilhar de emoção quando eles o abraçaram. – "Somos todos irmãos", lhes disse. "Um dia os nossos povos caminharão sempre juntos".



Então, senhores historiadores, que é feito dos vossos conhecimentos e da vossa memória?

A juventude portuguesa terá que saber da verdade histórica que, nos subterrâneos do tempo, fundamentou o nascimento das nações africanas que falam a nossa língua e nos deu então a liberdade. A liberdade que ainda temos.



Que fizeram dos nossos sonhos, Manuel?



Decorridos tantos anos, o que vemos?

A nossa revolta de 63 foi enterrada, o 25 de Abril morreu há muito, os velhos conceitos políticos transfiguraram-se do dia para a noite (não apenas simbolicamente), já não existem esquerda e direita mas uma nova linha ética que marca plenamente dois territórios, o mundo dos homens que defendem o povo, os humildes e os pobres, o imperativo categórico da verdade, a igualdade de oportunidades e, do outro lado, aqueles que se defendem a si próprios, as suas fortunas, os seus privilégios, as suas leis ultrapassadas na justiça, na educação, na saúde, na administração, provocando a miséria do pão-nosso de cada dia, a insegurança nas ruas, a destruição das nossas florestas e os incêndios programados, a corrupção nos serviços, os compadrios dos partidos políticos (em que todos se ajeitam), as incompetências dos serviços públicos, os discursos vazios de dirigentes partidários, o negocismo que manda construir estádios megalómanos em detrimento da construção de novos hospitais, o absurdo despesismo com os nossos soldados no estrangeiro, a aquisição de material de guerra que ninguém sabe contra quem, enfim, o crescente divórcio entre o povo e o Estado.

A lista não tem fim.



Compete ao futuro Presidente da República corrigir estes desmandos e vigiar o comportamento ético do Estado. Sim, Ético. E estamos em cima do fio da navalha:

Se o povo português não compreender que estas eleições são as mais importantes em Portugal depois do 25 de Abril e não souber votar com a consciência de que é o futuro da nossa juventude (o futuro do país) que está em causa, então jogará a pátria nos braços e nas garras de soberanias alheias.

Basta.

Que não se fale tanto em democracia a torto e a direito mas que a pratiquem de coração aberto.

Não são os partidos que elegem o Presidente.

O povo é que deve dar a sua Voz.



Esta é a mensagem que te deixo nesta hora dramática da vida dos portugueses. A nação procura um homem sério, corajoso, leal, abnegado, generoso e honrado. Com a dignidade das íntimas convicções.

Avança, Manuel.



Publicado em:

www.manuelalegre.com

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