quarta-feira, setembro 20, 2006


Foto de José Luis Mendes - Pontos de Vista




ALENTEJO REVISITADO


Ele queria ser sinónimo de Alentejo velho


foi-lhe dito que a urze quando nasce
é o lápis que risca a roxo a linha do montado
e divide em horizonte o Céu e o resto do mundo;
foi-lhe dito que a geografia duma azinheira
termina em cabelos de fogo e que seus braços
espreguiçados ao calor são o descanso da terra


falaram-lhe que as ribeiras soltas tinham vida
e que cada gota cheirava a suor e lágrimas
presas à lâmina pujante duma enxada na semente;
alguém lhe disse que os riachos eram de sabão
e que emanavam cânticos de mulheres selvagens
protegendo os filhos debaixo dos aventais lavados


contaram-lhe que as tardes eram só os dias longos
enrolados no vento maestro das searas espigadas
só à espera do ouro para alimentarem os alforges;
disseram-lhe que os açudes do rio eram o sisal
que cingia o trigo secado e embalado nos braços
de uma ceifeira quase morta pelo cansaço


foi-lhe dito que os espinhos da esteva são aves
e deles brotam flores alvas formando as paredes
das moradas plantadas no meio do caminho;
foi-lhe dito que à planície menstruada de papoilas
se chamava sangue quente no barro ao lume
misturado com pobreza e cheiro a poejo pisado


falaram-lhe que nos montados se corre descalço
e que dos pés brotam os beijos quentes da lavra
debulhando a canção analfabeta das planícies;
contaram-lhe que do entendimento das estações
se acalentam as monções da eira e do vento sul
com a esperança de uma meia sardinha no pão


disseram-lhe das mãos que se entrelaçam no frio
e que das palavras entreabertas no postigo
sobra o odor a infusas de chuva e pés de hortelã;
foi-lhe dito que a fortuna das gentes é o canto dorido
e das gargantas dos frutos nascidos vive o quebranto
tragado no cucharro que partilha a lavoura de cem


alguém lhe disse que as camisas de preto eram véus
e os chapéus o respeito pela cara caiada de Deus
que das feridas da terra protegia a fome do povo;
foi-lhe dito que o passado não retorna nos calos das mãos
que o velho se tornou saudade na charneca do sonho
e que de Alentejo só a memória de quem já viveu tudo.



Rita Beja (Antologia de Escritas nº 3)

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