quinta-feira, outubro 14, 2010

HIPÉRION E DIOTIMA





Às vezes, quando a noite se prolonga
na espessa madrugada, abrindo as veias,
e podemos ouvir, sem grande esforço,
o secreto ruído das asas
dos anjos pelo céu,
é um bom exercício contemplar
um rosto que se amou, fixar-lhe os traços
até sabermos reconstituir
cada pequeno pormenor,
cada poro da pele outra vez nossa,
cada olhar liquefeito, cada antigo
sorriso onde ardiam as maiores
ilusões deste mundo.


Agora que experimento fazer isso,
utilizo o teu rosto: ele atravessa
a cegueira das noites em que não dormimos,
o espelho embaciado dos meus olhos,
o cristal sempre intacto dos mais belos
sonhos.


Podes ficar aqui? Não vás embora,
precisarei de mais alguns minutos,
horas, dias, semanas, meses, anos,
eternidades para te esquecer.
Por favor, não te esfumes no meu sono,
nesse pântano lento onde me afundo
entre o lodo já turvo dos lençóis
e as lágrimas tão ácidas do dia
que há-de nascer, que já nasceu sem ti,
como se o próprio sol quisesse castigar
a minha vida com a tua morte.

Fernando Pinto do Amaral




Foto de Nina Efremova

terça-feira, outubro 12, 2010

ÂNSIA




Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

Mia Couto



Foto de Berenice Kauffmann Abud


sábado, outubro 09, 2010

ROMANCE INGÉNUO DE DUAS LINHAS PARALELAS






Duas linhas paralelas
muito paralelamente
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.

Seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço
que ninguém sabe onde é
se podiam encontrar
falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
uma delas certo dia
voltou-se para a outra linha
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
«Deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...»

Diz a outra: « Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
se quisermos lá chegar
temos de ir devagarinho
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!»

Não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada
pela calada, sem um grito
deita a mãozinha matreira
puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
as duas a murmurar
olharam-se docemente
e sem fazerem perguntas
puseram-se a namorar
seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
fica uma estória banal
com linhas e entrelinhas,
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

(Eu sou português aqui )



Foto de Igor L.

PORQUE VOLTO

  PORQUE VOLTO . Volto, porque há dias antigos que ainda nos agarram com o cheiro da terra lavrada, onde em cada ano, enterrávamos os pés e ...