quinta-feira, dezembro 11, 2008

APELO À POESIA




APELO À POESIA

Por que vieste? - Não chamei por ti!

Era tão natural o que eu pensava,

(Nem triste, nem alegre, de maneira

Que pudesse sentir a tua falta...)

E tu vieste,

Como se fosses necessária!



Poesia! nunca mais venhas assim:

Pé ante pé, covardemente oculta

Nas ideias mais simples,

Nos mais ingénuos sentimentos:

Um sorriso, um olhar, uma lembrança...

- Não sejas como o Amor!



É verdade que vens, como se fosses

Uma parte de mim que vive longe,

Presa ao meu coração

Por um elo invisível;

Mas não regresses mais sem que eu te chame,

- Não sejas como a Saudade!



De súbito, arrebatas-me, através

De zonas espectrais, de ignotos climas;

E, quando desço à vida, já não sei

Onde era o meu lugar...

Poesia! nunca mais venhas assim,

- Não sejas como a Loucura!



Embora a dor me fira, de tal modo

Que só as tuas mãos saibam curar-me,

Ou ninguém, se não tu, possa entender

O meu contentamento,

Não venhas nunca mais sem que eu te chame,

- Não sejas como a Morte!








UMA HISTÓRIA VULGAR


Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
Para sentir, enfim, justificada, a vida;
E supor que podia, a partir desse instante,
Abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
Minh'alma enternecida.

Fitar o teu olhar, era um deslumbramento,.
Que me transfigurava e me fazia crer
Que depois de viver, na terra, esse momento,
-- Sereno, como após o extremo sacramento --,
Já podia morrer.

Premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
Com profunda emoção: -- É só por ti que existo!
-- Como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
Caiu neve no fogo em que a minh'alma ardia...
Amor, como foi isto?!

Passas por mim, agora, e nada me insinua
Ser a tua presença o derradeiro elo
Que me prendia à vida. -- E a vida continua!
E tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua...)
Mesmo sem ti, é belo!

Como havemos de ter, nos outros, confiança?
Que humano sentimento a nossa fé merece?
De que servem, na vida, os ideais e a esperança,
Se o próprio Amor, -- como os brinquedos, em criança --,
Tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?!








DESAPARECIDO


Sempre que leio nos jornais:

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Embora sejam outros os sinais,

Suponho sempre que sou eu.



Eu, verdadeiramente jovem,

Que por caminhos meus e naturais,

Do meu veleiro, que ora os outros movem,

Pudesse ser o próprio arrais.



Eu, que tentasse errado norte;

Vencido, embora, por contrário vento,

Mas desprezasse, consciente e forte,

O porto do arrependimento.



Eu, que pudesse, enfim, ser eu!

- Livre o instinto, em vez de coagido.

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Eu, o feliz desaparecido!







O AMIGO



Era bom encontrar o amigo

No Café, onde estava a olhar

Com um gesto elegante e ambíguo

Para o fumo a sumir-se no ar.



A poesia era o tema dilecto

Da conversa que o tempo engolia.

O real, o preciso, o concreto

Nem sabiam que a gente existia.



Nada era para nós maculado,

Nem um só sentimento era fosco:

Porque havia outra luz, outro lado,

E o mistério morava connosco.



Tudo isto foi antes de Orfeu

Ter levado o encanto consigo.

Esse amigo está vivo - e morreu.

(E de mim, que dirá êsse amigo?)








Carlos Queirós

Nasceu em 1907, em Paris.


Poeta, ensaísta, crítico literário e de arte, estudou Direito na Universidade de Coimbra, tornando-se funcionário da Emissora Nacional, onde organizou programas culturais. Assíduo colaborador da Presença e de outras publicações literárias, foi considerado um elo de ligação entre a geração presencista e a de Orpheu.


Considerado um discípulo directo de Fernando Pessoa, a sua poesia caracteriza-se pela perfeição formal, pelo equilíbrio e sobriedade e pela sugestão musical. Denuncia alguma herança romântica e certa aproximação ao simbolismo.


Morreu em 1949, em Paris.








Algumas obras:



Poesia:

Desaparecido (1935)


Breve Tratado da Não-Versificação (1948)


Desaparecido e outros Poemas (1957)


Prosa:

Homenagem a Fernando Pessoa (1936)



Fonte:Instituto Camões


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