domingo, junho 23, 2019

A AUSENTE


A AUSENTE


Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...
Vinícius de Moraes


Foto de Andrey Voytsekhov 

quinta-feira, junho 20, 2019

RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM



RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
JOSÉ SARAMAGO

quarta-feira, junho 19, 2019

O FAROLEIRO




O FAROLEIRO
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Apenas este ilhéu é que é pequeno
O resto é tudo grande: o tédio, a vida,
O dia enorme, a noite mais comprida,

E o mar, calmo ou feroz, rude ou sereno;
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O tempo, esse narcótico veneno,
A dor, essa letárgica bebida,
O desejo, essa voz enrouquecida,
E a saudade, o distante e branco aceno.
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Tudo profundo, imenso, na amplidão,
Eterno quási na desolação
E sobrenatural na solidão.
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A luz vermelha a reflectir-se além…
Nenhum vapor que vai, nenhum que vem…
Farol e faroleiro – e mais ninguém
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CABRAL DO NASCIMENTO
1897/1978

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sábado, junho 15, 2019

EU QUERIA ...



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
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Eu queria trazer-te uns versos muito lindos.
colhidos no mais íntimo de mim...


Suas palavras

seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...


Sim! uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.


Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel...


Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!
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Mario Quintana
(1906-1994)

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sexta-feira, junho 14, 2019

AS ROSAS



PARA QUEM TANTO GOSTA DE ROSAS...

As rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto de Joaquim Simões.

quarta-feira, junho 12, 2019

QUANDO ...



Quando no meu bolso não tenho nada
tenho poemas
quando no frigorífico não tenho nada
tenho poemas
quando no coração não tenho nada
nada tenho.
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ABBAS KIAROSTAMI

Abbas Kiarostami foi um poeta, cineasta, roteirista, produtor e fotógrafo iraniano.
1940-2016
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PORQUE VOLTO

  PORQUE VOLTO . Volto, porque há dias antigos que ainda nos agarram com o cheiro da terra lavrada, onde em cada ano, enterrávamos os pés e ...