sexta-feira, setembro 30, 2016

AS RAÍZES DO NOSSO AMOR






Amo-te porque tudo em ti me fala de África, 
duma forma completa e envolvente. 
Negra, tão negramente bela e moça, 
todo o teu ser me exprime a terra nossa, 
em nós presente. 

Nos teus olhos eu vejo, como em caleidoscópio,
 madrugadas e noites e poentes tropicais, 
- visão que me inebria como um ópio, 
em magia de místicos duendes, 
e me torna encantado. (Perguntaram-me: onde vais? 
E não sei onde vou, só sei que tu me prendes...) 

A tua voz é, tão perturbadoramente, 
a música dolente dos quissanges tangidos 
em noite escura e calma, 
que vibra nos meus sentidos 
e ressoa no fundo da minh'alma. 

Quando me beijas sinto que provo ao mesmo tempo 
o gosto do caju, da manga e da goiaba, 
- sabor que vai da boca até às vísceras 
e nunca mais acaba... 

O teu corpo, formoso sem disfarce, 
com teu andar dengoso, parece que se agita
 tal como se estivesse a requebrar-se 
nos ritmos da massemba e da rebita. 
E sinto que teu corpo, em lírico alvoroço, 
me desperta e me convida 
para um batuque só nosso,
 batuque da nossa vida. 

Assim, onde te encontres (seja onde estiveres, 
por toda a parte onde o teu vulto fôr), 
eu te descubro e elejo entre as mulheres, 
ó minha negra belamente preta, 
ó minha irmã na cor, 
e, de braços abertos para o total amplexo, 
sem sombra de complexo, 
eu grito do mais fundo da minh'alma de poeta: 
- Meu amor! Meu amor!


Geraldo Bessa Victor

Luanda-1917 / Lisboa-1990


Foto de Marc Hoppe

quarta-feira, setembro 28, 2016

PRAIA



PRAIA

Feliz, quem sabe, o vento. Sem memória,
beijando-me nos lábios, ele abraça
o meu destino às cegas na paisagem.
É sempre nesse instante que regresso
à poalha do céu onde começa
talvez a maldição, talvez o encanto
de invocar-te em silêncio. Porque, eu sei,
entre palavras morre a cor dos sonhos,
o vão pressentimento de estar vivo.

Feliz talvez o vento e no entanto,
arrasta ainda areia e vagas vozes
na praia ao abandono. A luz da tarde
encobriu-se de névoa, só o mar
ficou perto de mim - agora é simples:
as ondas trazem novo o teu sorriso,
movem o seu abismo nos meus olhos,
mas lágrimas nenhumas vão salvar-me o corpo,
a alma, as cinzas, esta vida. 

Fernando Pinto do Amaral

Pintura - Betty Martins


terça-feira, setembro 20, 2016

PALAVRAS



Palavras que se dizem ao ouvido
quando nos queima a febre do desejo
e só ganham sentido
se saírem dos lábios como um beijo.

Palavras murmuradas no calor
da mútua entrega
a deixar claro que o amor
nunca sossega.

Palavras revestidas de veludo
para afagar a vida
e que no meio da corrida
são elas próprias quase tudo.

Torquato da Luz

Pintura de Betty Martins

terça-feira, setembro 13, 2016

TER - TE



Ter-te longe
e desejar-te aqui,
onde o frémito do corpo acontece.
Aqui, lugar onde
o vício dos olhos e das mãos me inquieta.

Ah, ter-te perto
suster a respiração,
cerrar os olhos
e deixar que tudo comece
e acabe em ti.

Ensaiar o voo da águia
e suavemente planar sobre a superfície
sinuosa do teu corpo perfeito
no asa-delta da paixão.

Ter-te perto,
sentir o perfume da tua presença
pelo calor do corpo,
pela claridade dos olhos
e pensar
que o sol e a alegria
de cada manhã,
nascem exatamente em ti.

MIGUEL AFONSO ANDERSEN, in “Circum-Navegações” (Raiz perturbada)

Foto de Oleg Obukhov

domingo, setembro 11, 2016

AMOR AMANTE



Ah, esse teu perfume que me deixa 


saudade e desperta doce lembrança,

ainda está em minhas mãos…



Ah, esse teu olhar que minh’alma invade

e me desnuda a ser em louco desejo,

e desperta doce lembrança,

ainda está em meu olhar…



Ah, esse teu corpo que se entrega

e se perde na carícia, no beijo,

e que recebe meu corpo quase cego,

e desperta doce lembrança,

ainda sinto ao meu lado…



Ah, esse amor que me consome,

maltrata sufoca e conforta,

é alimento, é vida, sabor de pecado…

faz renascer minh’alma quase morta…



Ah, essa saudade que sinto a

todo instante…

e desperta doce lembrança,

a certeza de que vivo,

de que amo… e sou amante…


Carlos Saad

.

Pintura de Rodica Toth Poiata 

sábado, setembro 10, 2016

ORDEM DO DIA





ORDEM DO DIA

Homens novos temperados pela guerra,
das fábricas enormes e cinzentas
- rasgai poemas na terra
com as vossas ferramentas!
.
Homens das oficinas e dos cais,
dos campos e da faina sobre o mar
- porque não ensinais
os poetas a cantar?
.
Algemados - não importa por que leis -
seja qual for a vossa raça e a vossa casta,
vinde dizer o que sabeis!
- Por agora é quanto basta.
.
Vinde das minas, dos fornos, das caldeiras,
vergados da descarga do carvão!
Vinde! Porque chegou enfim o dia
de apressar a tarefa inconcluída!
.
- E a poesia, esta poesia,
é um facho que vai de mão em mão
pelos caminhos da vida.
.
Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"

Pedro Sidónio de Araújo Muralha (Lisboa, 28 de julho de 1920 - Curitiba, 8 de dezembro de 1982) foi um escritor português.
Ainda muito jovem colaborou com revistas e publicações literárias de algum modo associados ao que viria a ser o neo-realismoportuguês (como por exemplo "Mocidade Académica" e "Solução").
Em 1941, incentivado por Bento de Jesus Caraça, publicou o seu primeiro livro de poesia: Beco. Integrou o movimento neo-realista e os agrupamentos lisboetas desta corrente literária, onde em conjunto com Armindo RodriguesJoaquim NamoradoFernando Namora ou Mário Dionísio foi uma das figuras de proa. Com a obra Passagem de Nível(Coimbra, 1942) fez parte do chamado Novo Cancioneiro, coleção que reuniu obras poéticas de vários autores contestatários do regime salazarista.
.
Pintura de Tarsila do Amaral.
.

quinta-feira, setembro 08, 2016

A LOUCURA DO POETA




Que a voz do Poeta não se cale


Que os olhos do Poeta não se fechem

Que os seus versos sejam a sirene

Que alerta toda a gente à sua volta

Que o poema seja o grito inconformado

Dos braços que se erguem na revolta

Contra os braços curvados e a cerviz

Submissa ao peso da opressão

Que o poema seja sempre vertical

Um relâmpago enorme em noite escura

Que o Poema seja uma canção

E rasgue o medo em mil pedaços

Com versos de amor e de ternura

Espalhados por mil bocas e mil braços

Que o Poeta seja mais que um ser humano

E que tanja a lira do seu canto

Elevando a Poesia até ao céu

E que entregue aos homens o seu Fogo

Assumindo o papel de Prometeu..



Quando o Poeta escreve por Amor

A palavra torna-se a armadura

Com que o Homem vence a própria dor

E destrói o vírus da amargura...



É louco, o Poeta? Deixem lá:

O mundo precisa da loucura...



FERNANDO PEIXOTO

No Palco da Saudade : Fernando Peixoto
http://www.jornalaudiencia.pt/index.php/opiniao/4315-no-palco-da-saudade-fernando-peixoto

quarta-feira, setembro 07, 2016

SE UM DIA A JUVENTUDE VOLTASSE





Se um Dia a Juventude Voltasse

se um dia a juventude voltasse 
na pele das serpentes atravessaria toda a memória 
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego 
da noite transformada em pássaro de lume cortante 
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida 

sulcaria com as unhas o medo de te perder...eu 
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza 
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras 
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou 
pode devassar a noite doutros corpos inocentes 
sem se ferir no esplendor breve do amor 

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio 
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos 
mas aconteça o que tem de acontecer 
não estou triste não tenho projectos nem ambições 
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos 
espalho a saliva das visões pela demorada noite 
onde deambula a melancolia lunar do corpo 

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim 
com suas raízes de escamas em forma de coração 
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido 
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu 
humilde e cansado piloto 
que só de te sonhar me morro de aflição 

Al Berto

in 'Rumor dos Fogos'

Foto de ilya Shubin

terça-feira, setembro 06, 2016

ÁRVORE DE FRUTOS



Cheiras ao caju da minha infância
e tens a cor do barro vermelho molhado
de antigamente;
há sabor a manga a escorrer-te na boca
e dureza de maboque a saltar-te nos seios.
Misturo-te com a terra vermelha
e com as noites
de histórias antigas
ouvidas há muito.
No teu corpo
sons antigos dos batuques à minha porta,
com que me provocas,
enchem-me o cérebro de fogo incontido.
Amor, és o sonho feito carne
do meu bairro antigo do musseque!

- António Mendes Cardoso - poeta angolano

Foto de Pascal Renoux

INÚTIL PAISAGEM de ANTONIO CARLOS JOBIM

  Mas pra quê? Pra que tanto céu? Pra que tanto mar? Pra quê? De que serve esta onda que quebra? E o vento da tarde? De que serve a tarde? I...