terça-feira, março 28, 2023

PORQUE VOLTO

 



PORQUE VOLTO
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Volto,
porque há dias antigos
que ainda nos agarram
com o cheiro da terra lavrada,
onde em cada ano,
enterrávamos os pés e os sonhos.
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Volto,
porque os olhos dos pastores,
continuam chorando
estios sem pastagens,
onde na terra gretada
o rosmaninho já secou.
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Volto,
porque me doem as recordações
dos lugares perdidos,
onde há nomes de gentes,
que me deixaram marcas,
sulcadas na pele e na alma.
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Volto,
porque ainda quero correr,
atrás das cotovias
que cantavam nas eiras,
quando o pão de trigo,
nascia nas mãos dos homens.
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Volto,
porque em tardes de sol,
há espaços na planície quente,
onde velas de moinhos decadentes,
ainda gritam o teu nome ao vento,
enquanto moem saudades velhas.
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Volto,
porque ouço canções tristes,
que os últimos cantadores,
penduram nas oliveiras abandonadas,
e que se arrastam comigo,
embalando nostalgias
fechadas dentro de mim.
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Volto,
porque o verde dos trigais
é da cor da esperança em colheitas,
que possam merecer a pena,
e porque as derradeiras cegonhas,
ainda moram nas torres das igrejas.
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Volto,
porque irremediavelmente,
luto por agarrar o tempo,
como outrora tentava
apanhar as rãs assustadas,
que se esgueiravam nos charcos.
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Volto,
porque o meu Alentejo,
é o último dos redutos,
onde consigo esconder os sonhos
que ainda trago fechados,
nas minhas mãos desesperadas!
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ORLANDO FERNANDES

(in Alentejo…e Outros Poemas)
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Foto aérea de ALVITO retirada do livro O CASTELO DE ALVITO com texto de Fialho de Almeida - Edição da Fundação da Casa de Bragança - 1946

A VOZ

 



A Voz
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Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido
os dedos que me
vogam
nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...
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Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...
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Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens
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MARIA TERESA HORTA

segunda-feira, março 27, 2023

CANÇÃO

 


CANÇÃO

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Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
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Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
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O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
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Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
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Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
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CECÍLIA MEIRELES
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Nasceu a 07 Novembro 1901
(Rio de Janeiro, Brasil)
Morreu em 09 Novembro 1964
(Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)
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Cecília Benevides de Carvalho Meireles foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira. É considerada uma das vozes líricas mais importantes das literaturas de língua portuguesa.

Olhos postos na terra ...

 

Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
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Eugénio de Andrade
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domingo, março 26, 2023

METADE

 



METADE
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Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.
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Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
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Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
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Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.
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Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...
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Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
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Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia e a outra metade, a canção.
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E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.
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OSWALDO MONTENEGRO

quinta-feira, março 16, 2023

VOZES

 

VOZES
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De um lado o inevitável
perfume doce
das tuas mãos,
o soletrar no vazio
deixado para trás;
de um outro,
a promessa incumprida,
o ritual amargo
da despedida:
a perdida música
onde as notas falham.
Resta a volta
das vozes
e o sonho - ainda -
imperfeito.
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PAULA RAPOSO

PORQUE VOLTO

  PORQUE VOLTO . Volto, porque há dias antigos que ainda nos agarram com o cheiro da terra lavrada, onde em cada ano, enterrávamos os pés e ...