Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé Para ver quem é, Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas Despertas; Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas, Órfãos de pais e mães, Andarem acossados pelas ruas Como matilhas de cães; Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente, Num silêncio de espanto Rasgado pelo grito da sereia estridente; Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas Amassando na mesma lama de extermínio Os ossos dos homens e as traves das suas casas; Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade, Enquanto for precido lutar até ao desespero da agonia, O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
Não é fácil amar-te, não é fácil colar à minha a tua pele. Mas, por mais que faça, não sei fugir à força que me impele a confundir no meu o teu abraço.
Nós viemos de longe, muito longe, escapados de nós mesmos, foragidos, em busca do lugar donde nos apelavam os sentidos.
Mas tão depressa nos perdemos, tão depressa a memória das coisas nos fugiu que, rápida, a estranheza do tempo nos tomou, como se um rio, em passando por nós, nos esquecera.
Não é fácil amar-te, não é fácil possuir-se a ausência de si mesmo. Mais difícil, porém, é sempre o espaço a vencer de regresso ao que esquecemos.
Mas se não amo, nem posso, Que pode então isto ser? Coração, se já morreste, Porque te sinto bater? Ai, desconfio que vives Sem tu nem eu o saber.
Porque a olho quando a vejo? Porque a vejo sem a olhar? Porque longe dos meus olhos Me andam os seus a lembrar? Porque levo tantas horas Nela somente a pensar?
Porque tímido lhe falo, E dantes não era assim? Porque mal a voz lhe escuto Não sei o que sinto em mim? Porque nunca um não me acode Em tudo que ela diz sim?
Porque estremeço contente Quando ela me estende a mão, E se aos outros faz o mesmo Porque é que não gosto e não? Deveras que não me entendo, Nem te entendo, coração.
Ou me enganas, ou te engano; Se isto amor não pode ser, Não atino, não conheço Que outro nome possa ter; Ai, coração, que vivemos Sem tu nem eu o saber.