sexta-feira, março 30, 2012

ESTRELA DA TARDE




Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia 

Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia 

Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia 

Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia 


 Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia 

E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria 

Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia 

Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia 


 Meu amor, meu amor 

Minha estrela da tarde 

Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde 

Meu amor, meu amor 

Eu não tenho a certeza 

Se tu és a alegria ou se és a tristeza 

Meu amor, meu amor 

Eu não tenho a certeza 


 Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram 

Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram 

Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram 

E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram 


 Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram 

Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam 

Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram 

E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram 


 Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto 

É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto 

Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto 

Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto 


 Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto! 


 ARY DOS SANTOS 

José Carlos Ary dos Santos (Lisboa, 7 de Dezembro de 1937 -- 18 de Janeiro de 1984) foi um poeta e diseur de poesia português. 


Foto de Sergey Ryzhkov

sábado, março 24, 2012

FADO SONETO






Cada manhã era a véspera da surpresa,
de silêncio em silêncio anunciada.
De encanto se tecia e de tristeza
essa noite cada vez mais desejada.



Do teu corpo prometido ainda o cheiro,
do teu ventre revelado ainda a chama.
A saudade do que foi um dia inteiro
na moldura do que foi a nossa cama.



Cada minuto um punhal impaciente,
cada gesto uma carícia antecipada,
cada suspiro um excesso de ar eloquente.



E a surpresa da surpresa desejada:
o sabor desse teu corpo adolescente
de mulher em cada beijo renovada.



FERNANDO TAVARES RODRIGUES

Professor universitário, sociólogo e escritor, Fernando Jácome de Castro Tavares Rodrigues (1954 - 2006) nasceu em Lisboa, no dia 7 de Março de 1954. Faleceu em Lisboa a 1 de Março de 2006.


Pintura de Iman Maleki

segunda-feira, março 12, 2012

POEMA DA CULPA






Eu a amei, e era de outro, que também a queria.
Perdoai a ela, Senhor, porque a culpa é minha.
Depois de haver beijado seus cabelos de trigo,
nada importa à culpa, pois não importa o castigo.

Foi um pecado desejá-la, Senhor, e, no entanto
meus lábios estão doces por esse amor amargo.
Ela foi como uma água calada que corria…
Se é culpa ter sede, toda a culpa é minha.

Perdoai a ela, Senhor, tu que destes a ela
sua frescura de chuva e esplendor de estrela.
Sua alma era transparente como um vaso vazio:
eu o enchi de amor. Todo o pecado é meu.

Mas, como não amá-la, se tu fizestes que fosse
pertubadora e fragante como a primavera?
Como não havê-la amado, se era como o orvalho
sobre a erva seca e ávida da estiagem?

Tratarei de rechaçá-la, Senhor, inutilmente,
como um sulco que tenta rechaçar a semente.
Era de outro. Era de outro que não a merecia,
e por isso, em seus braços, seguia sendo minha.

Era de outro, Senhor, mas há coisas sem dono:
as rosas e os rios, e o amor e o sonho.
E ela me deu seu amor como se dá uma rosa
como quem dá tudo, dando tão pouca coisa…

Uma embriaguês estranha nos venceu pouco a pouco:
ela não foi culpada, Senhor… nem eu tampouco
A culpa é toda tua, porque a fizestes bela
e me destes os olhos para mirá-la.

Sim. Nossa culpa é tua, se é uma culpa amar
e se é culpado o rio quando corre até o mar.
É tão bela, Senhor, e é tão suave, e tão clara,
que seria pecado maior se não a amasse.

E por isso, perdoa-me, Senhor, porque é tão bela,
que tu, que fizestes a água, e a flor, e a estrela,
tu, que ouves o lamento desta dor sem nome,
tu tambem a amarias, se pudesses ser homem.

JOSÉ ANGEL BUESA

in eupassarin

Foto de Juan Velasco

quinta-feira, março 08, 2012

POEMA MELANCÓLICO A NÃO SEI QUE MULHER





Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.



Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...


MIGUEL TORGA


Pintura de Tamara Lempicka

segunda-feira, março 05, 2012

A DIMENSÃO DO TEMPO







Porque não pára o tempo

quando estás ao meu lado?

É tão curto o tempo para te ouvir ...


Depois há os teus olhos

em que paro

nesta longa viagem ao interior da tua sedução

e de onde não me apetece partir...


Ah se eu pudesse suster os relógios

ficaríamos assim

de mãos dadas por toda a eternidade


um período demasiado exíguo

para a dimensão enorme do tempo deste amor.


FERNANDO PEIXOTO


Foto de Vyacheslav Sokhin

sábado, março 03, 2012

AUTO-RETRATO





Eu sou … aquilo que sou – nem mais nem menos,
Alguém que vai vivendo ... bem e mal...
Um ser que vai soltando amargos trenos
Na ânsia de fugir a ser banal,

De não se definir nos epicenos
(Difusa luz que aspira a ser fanal!).
Alguém que o muito amar, letal veneno,
Tornou em triste vate do seu mal.

Deambulando oníricos roteiros,
Numa evasão aos rumos prisioneiros
Que a vida nos limita, coactiva,

Eu, que sou Eu, resista quem resista,
Quero manter o dom desta conquista
De ser quem sou, aonde quer que viva.

ANTÓNIO DE ALMEIDA


Pintura de William Bouguereau

sexta-feira, março 02, 2012

ROTAÇÃO





É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.

NUNO JÚDICE

Foto de Сергей Михеев

INÚTIL PAISAGEM de ANTONIO CARLOS JOBIM

  Mas pra quê? Pra que tanto céu? Pra que tanto mar? Pra quê? De que serve esta onda que quebra? E o vento da tarde? De que serve a tarde? I...