quarta-feira, abril 04, 2007

VEM SERENIDADE

Foto de Pascal Renoux



Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de ouro que fugiram da Lua,
com as nuvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.

Vem, serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
o papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.


Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,
mais úmida que a pele marítima do cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais livre que uma ave em seu vôo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

Vem, serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gás
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes,
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagão de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.


Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem, serenidade,
e absolve os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.

E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.


Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.


Vem, com teu frio de esquecimento,
com tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente,
Serenidade, és minha.

Raul de Carvalho

Poeta natural de Alvito
Excertos do poema “Vem Serenidade” dedicado à memória de Fernando Pessoa.

3 comentários:

Leonor C.. disse...

Lindo e não conhecia.
Espero que tudo esteja bem contigo.

Kalinka disse...

AMIGO
que lindo poema de Raul de Carvalho! Obrigado pela partilha e parabéns pela óptima escolha.

E o tempo não me deu tempo
Do tempo que precisei
Ao tempo eu peço o tempo
Do tempo em que sonhei…

Pois...em breve, se as coisas não mudarem estarei me despedindo de todos aqui na blogoesfera:
...Agradeço a todos...e sinto-me triste por vos deixar, mas já não consigo ter tempo...

TEMPO o eterno problema de todos nós; é complicado gerir as vidas de pessoas como nós que além de trabalhar 7 horas + 1 hora de almoço, mais 3 horas de viagem trabalho-casa e vice-versa...ainda tem que tratar da casa e da família...está a ficar muito difícil conjugar tudo.
Eu sei bem ao que me estou a referir...se quero estar um pouco na net à noite ando a dormir apenas 5 horas, deito-me às 2h da manhã e levanto-me às 7h da manhã, não dá!!!

Beijos e abraços.

agua_quente disse...

Belíssimo poema! Não conhecia.
Beijos

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